Encruzilhada própria para reunião de bruxas e outros
seres malignos que andam «pelo mundo para
perdição das almas», os serões, em redor da
lareira, deram conta, através de gerações, de
milhentas histórias ligadas a tão funestos seres que
ali assentavam poiso, altas horas da noite.
A versão
mais recente ligava-se à visão que tivera o filho de
um velho serrador de madeira do concelho. O pai,
depois de passar uma quinzena a cortar em fatias
rolos de pinheiros, um dia, deixando a «burra»
e o «serrão», posto o produto da sua arte e
suor em cima de um carro de bois, foi vendê-lo à
feira de Lamego. Era preciso chegar cedo pois ali
afluíam, vindos de todos os lados, outros colegas de
ofício na mira de, também eles, venderem pelo melhor
dinheiro a madeira procurada para casas e barracões
do burgo ou então para quintarolas fora de muralhas.
Ainda o
dia era uma criança e já o carro, ferradinho de
novo, com trilhos acabadinhos de sair da forja,
estava às portas da cidade, deixados que foram para
trás, Colo de Pito, a velha ponte romana de
Reconcos, Magueija, Matança, Penude e demais aldeias
por onde passava a estrada real que ligava Castro
Daire à cabeça da Diocese.
Vendida
a madeira, para não regressar com o carro vazio, o
serrador foi fazer compras. Dois cestos de figos e
outros tantos de uvas de mesa, uvas temporãs, que
iriam fazer as delícias da prole, faziam parte da
carrada.
Já o sol
descambava no horizonte, prestes a aninhar-se no
colo da noite, quando saiu das portas gradeadas da
cidade. Pachorrento o carro de bois, agora
silencioso - ele gastara o repertório de estridentes
árias na ida - sem dificuldade, venceu as curvas
que, da cidade de Lamego até Reconcos, fazem negaças
a almocreves e romeiros que, dia a dia, ou, ano a
ano, das bandas do Montemuro vão àquela cidade em
negócios ou cumprir promessas à Senhora dos
Remédios.
Com o
serrador viajou o filho, ainda pequenote - é de
pequenino que se torce o pepino - que, tanto na
ida como no regresso, foi a maior parte do tempo em
cima do carro, só dele descendo quando não aguentava
mais a dureza do assento. Gostou mais do regresso.
De quando em quando, às escondidas do pai, qual
melro atrevido, debicava um cacho de moscatel
ou de quilhão de galo, uvas bafejadas pelo ar
do Douro, mas que não vingavam nas encostas do
Paiva, por mais enxertos que fizessem os
agricultores. Mas por teimosia lá continuavam a
trazer os ?garfos?, sempre na esperança de
melhorarem a qualidade das suas produções. Trazer a
casta, mas não trazer o solo nem os ares do Douro
revelou-se, contudo, pouco prometedor. A experiência
assim o ditava, mas os lavradores não desistiam.
Mordiscando cachos, embrulhado e embalado pelo passo
pachorrento dos bois, ora dormitava, ora acordava,
parecendo-lhe que a viagem não tinha mais fim.
Estava visivelmente cansado.
Ao
chegarem ao lugar da Ouvida, àquela encruzilhada de
caminhos, sítio descampado onde o vento não encontra
barreiras, vindo o pai a dormir estendido ao
comprido em cima do carro, e o rapaz sentado nas
chedas agarrado ao último estadulho, olho vivo a
espreitar as estrelas, eis que, à sua frente, se
deparou com um grupo de mulheres todas nuas a
dançarem à roda. Os cantares próprios dos arraiais a
que já assistira na aldeia, eram substituídos por
gargalhadas estéricas, guinchos, risadas
estridentes, assustadoras de morte. Saracoteando os
corpos, faziam-no com tal leveza que, dir-se-ia, não
punham os pés no chão. Luzes esquisitas, bem
diferentes daquelas que dão as velas e lamparinas de
azeite, iluminavam o cenário. «Mulheres àquela
hora da noite, dançando à roda numa encruzilhada,
naquele jeito e naquele estado, só podiam ser bruxas».-
pensou o garoto. E lembrando-se das histórias de
bruxas que, durante os serões enchiam
sistematicamente o seu imaginário de criança,
ocorreu-lhe aquilo que diziam elas serem capazes de
fazer: transportarem pelos ares carros e pessoas
depositando-os em qualquer lugar esconso de difícil
acesso. Medroso, arrepiado, a tremer como varas
verdes, ficou mudo como um penedo. As vacas
continuaram o seu caminho e, ao aproximarem-se do
sítio da dança, as mulheres tomaram a forma de
nuvens e, como que sopradas pela brisa da meia
noite, desapareceram sem deixar rasto.
Já em
casa, ele conta a visão que tivera.
Que sim.
Era verdade, verdadinha, as bruxas apareciam ali e
noutras encruzilhadas não perdoando a quem se
metesse com elas, a quem as provocasse. Quantos
carros não haviam sido já encontrados em barrancos e
ravinas levados pelas bruxas?
-
Fizeste bem, bico caladinho foi o melhor, se não
lá estaríamos também nós. «Quem vai, vai. Quem
está, está!»*
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